Não quero fazer deste artigo um chororô,
nem denunciar o que já se sabe. Apenas relembrar alguns absurdos e
convidar os indignados a encontrarmos uma forma de impedir que isso tudo
continue.
No mês passado, após retornar de uma das frequentes viagens a
Santarém e noticiar o esbulho do prédio da antiga Padaria Lucy, cuja
parede frontal estava sendo empurrada para a calçada a título de
esconder um prédio que se ergue por detrás e cujas obras se fazem sobre
os escombros da velha edificação, fiquei ainda mais apreensivo ao ler
que outro “empresário” simplesmente fizera o mesmo com o Solar dos
Macambiras, na rua Siqueira Campos. Neste caso, houve alguma reação e
até um velório foi ensaiado. Pois bem, ou pois mal, essa tem sido a regra no trato da herança cultural de gerações passadas, inclusive de gerações que antecederam a cultura europeia que se implantou no século 16, como veremos mais adiante.
Pela memória: nos anos 1960 o prefeito Everaldo Martins, de Santarém,
uma das cidades mais antigas e conhecidas da Amazônia, mandou demolir o
Teatro Victoria para transformá-lo em Câmara de Vereadores. Antes, o
teatro já servia de Biblioteca Municipal, cujo acervo foi todo para o
fogo a mando do capitão Elmano Moura Melo, interventor militar, sob
argumento de que ali só havia “livros velhos”. Bem antes ainda, o
modesto e belo teatro já fora depósito de fardos de juta.
Foi esse mesmo prefeito militar que mandou derrubar todas as mangueiras das duas principais avenidas da cidade nos anos 60, a Rui Barbosa e a São Sebastião, para em seu lugar plantar acácias que a Celpa nunca deixa crescerem. Igualmente como fez o ex-prefeito Joaquim de Lira Maia, hoje deputado federal e ex-candidato a vice na chapa de Hélder Barbalho. Maia mandou botar no chão todas as árvores de um trecho da travessa Assis de Vasconcelos, sem a menor necessidade, para passar asfalto.
Só para recordar: o Teatro Victoria foi um empreendimento de pessoas
simples de Santarém quando a cidade tinha apenas 5 mil habitantes, na
última década do século 19. Quando a obra estava quase pronta, o
governador da Província do Pará conseguiu que o parlamento provincial
aprovasse uma verba para a conclusão da obra. O dinheiro foi recusado
pelos jovens de um grupo teatral que arrecadava os recursos com as suas
apresentações. Portanto, junto com o prédio, foi-se também um momento
particularmente significativo da auto-estima de uma cidade que hoje
pouca auto-estima tem por si mesma.
Mais ou menos pela mesma época deu-se início a uma certa “reforma da
catedral”, com pedido de dinheiro em programas da Rádio Rural,
notadamente pelo radialista Osmar Simões. A reforma, na verdade,
redundou na completa descaracterização interna do belo edifício
religioso, moldado na arquitetura clássica e dotada de um forro que
atraía visitantes de todo o Brasil. A beleza arquitetônica ficou por
fora; por dentro, uma igreja igual a tantas outras, sem história e sem a
riqueza da arte religiosa.
Um pouco antes, botaram abaixo a belíssima capela de São Sebastião, construída pelos escravos, dado que a eles não era permitido entrar em igreja de branco. Em seu lugar, está lá um templo de arquitetura modernosa, lembrando as edificações do sul dos Estados Unidos, com as paredes cheias de buracos para a suposta entrada do vento.
Nos anos 1980, no governo do prefeito Ronan Liberal, nada se fez para impedir que o Castelo, belíssima edificação dentro das águas do Tapajós, ruísse até sumir no rés do chão e das águas, como diria Benedicto Monteiro. E a cidade perdeu uma parte de sua cara e de sua história, pois foi ao redor e dentro do Castelo que um numeroso grupo de pescadores, no final do século 19, emparedou e expulsou um grupo de empresários portugueses que capturavam enormes quantidades de pescado para exportação, em prejuízo dos pescadores artesanais.
O casarão do Barão de Santarém, Miguel Antonio Pinto Guimarães, ex-vice e ex-governador da Província do Pará, teve arrancados todos os azulejos originais de sua bela fachada, sina que marca diversos outros casarões históricos.
Dos nossos avós, os índios Tupaiús, da opulenta coleção de sua cerâmica,
que rivaliza com a dos povos do Marajó, restam poucas peças, alguns
cacos que ficaram após a morte do colecionador Ubirajara Bentes de
Souza. O melhor da coleção está no museu de antropologia da USP, em São
Paulo.
Um breve inventário encontrará muito mais absurdos, como este: o
historiador João Veiga dos Santos me contou certa vez que chegou ao
Colégio Santa Clara e percebeu uma fogueira debaixo de uma árvore.
Bibliófilo, ele correu a tempo de retirar da fogueira alguns exemplares
de “livros velhos”. Entre estes, estava a Chronica do Padre João Felipe
Bettendorf, festejado pelo mundo oficial como o “fundador” de Santarém.
Ocorre que, segundo João Santos, naquele momento aquele era talvez o
único exemplar da Chronica existente na cidade. Mais tarde foi reeditado
pela editora da Universidade Federal do Pará. O mesmo colégio, com a
sua tradição, teve arrancadas todas as mangueiras que enfeitavam o seu
redor, seguindo a tendência geral de devastar uma cidade que, há três ou
quatro décadas erguia-se debaixo de um imenso arvoredo urbano e era bem
mais refrescada. Hoje todos se queixam do aumento do calor ao mesmo
tempo em que se prossegue o desmatamento urbano.
Trata-se de uma cidade que se decanta pelas suas belezas naturais e
onde, no entanto, nada se está fazendo para, pelo menos, saber o quanto
de poluição e contaminação estão descendo pelo Rio Tapajós, provenientes
dos garimpos, em direção à foz, para possivelmente enlamear as suas
mais belas praias, inclusive a decantada e celebrada Alter do Chão.
Parabéns pelo blog !!
ResponderExcluirE bonito ver que ainda existe pessoas preocupada com a cultura de nossa cidade, muito bom o bolg ..